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5 de set. de 2011

A liberdade e a lei


RESENHA SOBRE “A LIBERDADE E A LEI” 
NA ENCÍCLICA VERITATIS SPLENDOR 

            A Carta Encíclica Veritatis Splendor é um documento importantíssimo, compilado no pontificado do Papa João Paulo II, de saudosa memória, que traz especificamente no seu segundo capítulo uma explanação sobre a doutrina da Igreja sobre a liberdade humana, na tentativa de orientar os pastores e esclarecer os fiéis na vivência autêntica da vida cristã.
            Em se tratando de “liberdade”, temos muitas teorias filosóficas e teológicas que entram em choque, pois as diversas opiniões acabam dando ao assunto interpretações diversas, o que dificulta um consenso entre os estudiosos sobre o que realmente significa a liberdade humana. O documento procura a luz da Palavra de Deus e da fé, responder aos cristãos da época (1993) e de hoje, no capítulo segundo, qual deve ser o seu comportamento moral em relação a tantas vertentes e proposições que surgem a cada momento.
            Sem dúvida que esse assunto “complicado e urgente” não foi esgotado pela Encíclica que tinha um objetivo mais abrangente como traz descrito em seu texto: “Hoje, porém, parece necessário refletir sobre o conjunto do ensinamento moral da Igreja, com a finalidade concreta de evocar algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no atual contexto, correm o risco de serem deformadas ou negadas” (VS, 4).
            Aqui, nesse pequeno ensaio, trabalharemos apenas a questão do segundo capítulo que traz como título “Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo (Rm 12,2): A Igreja e o discernimento de algumas tendências de Teologia Moral hodierna”, na abordagem do tema do primeiro ponto intitulado “A liberdade e a lei”.
            Para tal tarefa utilizaremos como texto base, a própria Carta Encíclica Veritatis Splendor e, alguns textos auxiliares no campo teológico, com o intuito de enriquecer ainda mais nossa pesquisa e, particularmente em especial, a Sagrada Escritura[1] que é para nós, que cremos na Revelação Divina, a própria Palavra de Deus, base segura da moral cristã.
                   




Capítulo Único


A ESSENCIAL SUBORDINAÇÃO DA RAZÃO E DA
LEI HUMANA À SABEDORIA DE DEUS E À SUA LEI



A palavra “liberdade” foi muito explorada pelos pensadores desde os remotos tempos da Filosofia Grega. Na Teologia ela ocupa também um espaço privilegiado devido à grande discussão em torno da responsabilidade de cada indivíduo diante de um Deus onipresente, onipotente e onisciente.
Também nos tempos modernos os “gritos de liberdade” são muitos e variados, fala-se de liberdade política, liberdade de imprensa, liberdade religiosa, liberdade de pensamento, liberdade de escolha sexual; e segue a lista com muitas outras possibilidades.
A Igreja, sendo guardiã da mensagem de salvação, deixada por Jesus Cristo, também teve que, ao longo dos séculos, estudar e discernir e emitir, através do Magistério, qual o seu conceito sobre a “liberdade”, principalmente diante da radicalidade do Evangelho, a Boa Nova de Jesus Salvador, que fez das palavras proféticas de Isaías, suas próprias, quando disse na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-19, grifo nosso). A Igreja, iluminada pelo Espírito Santo, entendeu desde muito cedo que o Senhor Jesus, não estava falando apenas de uma libertação de presos dos calabouços romanos e, que não se tratava apenas de uma liberdade de oprimidos pelo governo político. Cristo, preocupado com o homem completo, queria antes de tudo “sanar” a ferida e a raiz de todos os males: o pecado. Portanto, aqui se entende a libertação e a liberdade da consciência do homem: “Por sua cruz e ressurreição Cristo realizou a nossa redenção: esta é a liberdade em seu sentido mais forte, já que ela nos libertou do mal mais radical, isto é, do pecado e do poder da morte” (Ratzinger, 1986). Claro que nem Cristo e nem a Igreja negam tantos outros aspectos externos e sociais que requerem a liberdade e libertação da humanidade, mas não abordaremos esse ponto aqui.
O Dicionário de Teologia Moral acentua que a Igreja fala de uma liberdade moral, para não entrar em choque com tantos outros conceitos existentes e, que não partem do mesmo fundamento para discorrer em seus discursos: “A liberdade moral é, com efeito, liberdade concreta. Em outras palavras, coincide com a capacidade efetiva que a pessoa tem para orientar a própria existência” (Compagnoni; Piana; Privitera, 1997).
O conceito da Igreja, acolhido e meditado da Sagrada Escritura, deve ser bem preciso e abrangente, pois já alertava São Paulo, na Carta aos Gálatas: “Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pela caridade, colocai-vos a serviço uns dos outros” (Gl 5, 13).
A nossa liberdade esbarra constantemente em muitos limites, pois ela é em si mesma limitada. Isso advém de sermos criaturas e só Deus ser o Criador; mesmo sendo feitos a Sua imagem e semelhança (Gn 1, 26), não gozamos da mesma e idêntica liberdade de Deus. Portanto, não é a liberdade absolutizada que deve ditar os parâmetros do agir moral cristão, pois junto a ela temos que equiparar o que é verdadeiro e o que é justo: “Verdade e justiça são, assim, a medida da verdadeira liberdade. Afastando-se desse fundamento, o homem, ao tomar-se por Deus, cai na mentira e, ao invés de se realizar, destrói-se” (Ratzinger, 1986).


1. “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás...” (Gn 2, 17)


Na passagem do Gênesis, num diálogo ludibrioso, a “antiga serpente”, que representa o diabo, o pai da mentira, tenta enganar Eva sobre como Deus havia disposto as coisas no Paraíso para eles, quando diz: “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?”. Com esta pergunta, percebe-se algo bem latente em nossos dias, que muitos acreditam que a verdadeira liberdade consiste em: poder fazer tudo, na hora e quando quisermos; pois ser livre é ser dono-de-si. E, levantando essa bandeira várias nações proclamam independência de todos os valores morais, principalmente os cristãos, porque querem ser totalmente livres.
A Encíclica Veritatis Splendor traz para esse dilema uma interpretação teológica sobre a Revelação Divina, muito interessante, onde a imagem, o relato do Gênesis “ensina que não pertence ao homem o poder de decidir o bem e o mal, mas somente a Deus” (VS, 35). Por isso, justifica-se o impedimento de comer da ‘árvore da ciência do bem e do mal’, ou em outras palavras, o limite imposto para que eles não cedessem à tentação de serem “... como deuses, versados no bem e no mal[2]” (Gn 3, 5).
Nesse ponto da Encíclica aborda-se um problema nevrálgico para as diversas concepções sobre a liberdade humana: a liberdade humana é ilimitada ou limitada? E a encíclica diz: “Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da “arvore da ciência do bem e do mal, chamada que é a aceitar a lei moral que Deus dá ao homem” (VS, 35).
Deus, sendo o Bem Supremo, conhece o que é melhor para nós e, em Sua excelsa bondade e amor, estabelece para nós certas regras e leis (os mandamentos). Bem fácil de compreender para aqueles que gozam de um pouco de critério cristão e autêntica fé num Deus que é amor: Aquele que nos criou sabe o que é melhor para nós!
Não são poucos que no mundo atual, assim também como na época da Carta Encíclica (1993), buscam semear confusão entre aqueles que manifestam uma fé monoteísta, principalmente os cristãos, acusando-os de estarem profundamente enganados no conceito de liberdade. Para eles, existe um suposto conflito entre liberdade e a lei (VS, 35), onde para que uma possa existir a outra deva ser plenamente eliminada. Aqui se transforma o desejo de liberdade numa luta ferrenha pela libertinagem[3], que se trata nada mais nada menos do que o uso indevido e desenfreado da liberdade, para uma linguagem teológica, diríamos: pecado.
A evolução dos conhecimentos humanos, a autonomia no trabalho e na produção de máquinas e computadores, levou a humanidade a explorar os limites de sua racionalidade e, junto a isso, cogitou-se muito fortemente a possibilidade de uma “completa soberania da razão no âmbito das normas morais, relativas à reta ordenação da vida neste mundo: tais normas constituiriam o âmbito de uma moral puramente ‘humana’...” (VS, 36).
Desta maneira o homem seria o autor e o juiz de seus próprios atos morais, pois até mesmo teria a soberania de “... ‘criar os valores’, e gozaria de uma primazia sobre a verdade, até ao ponto de a própria verdade ser considerada uma criação da liberdade” (VS, 35).
Para amenizar esse conflito, alguns teólogos moralistas tentaram introduzir, na vida cristã e na Igreja, “uma nítida distinção, contrária à doutrina católica, entre uma ordem ética, que teria origem humana e valor apenas temporal, e uma ordem de salvação, para a qual contariam somente algumas intenções e atitudes interiores relativas a Deus e ao próximo” (VS, 37). Entretanto, logo se percebeu a incompatibilidade dessa teoria com a Palavra de Deus, o Magistério e a Sagrada Tradição. Pois a lei moral, a moral do cristão, não é resultado de uma adaptação ou adequação da Revelação Divina ao contexto histórico vivenciado pelo sujeito individual, ao contrário, somos nós que devemos nos deixar “formar” por Deus.
2. “... e o abandonou nas mãos de sua própria decisão” (Eclo 15, 14b)


            A “verdadeira liberdade”, diz o Concílio Vaticano II, na Gaudium et spes, consiste em reconhecer que: “Deus quis deixar o homem entregue à sua própria decisão, para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele” (VS, 38). A aceitação de Deus, por parte do homem é uma livre escolha, uma resposta.
            Ao homem Deus também concedeu poder de governar toda a terra, quando disse: “... enchei a terra e submetei-a; dominai...” (Gn 1, 28), mas isso não indica de forma alguma que o homem detém plena liberdade para fazer das criaturas o que ele quiser, pois sua posição é de administrador, de governo e não de possuidor pleno dessas mesmas criaturas, onde a Gaudium et spes chama a atenção para o cuidado com esse aspecto lembrando que “as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando” (VS, 38). Portanto a humanidade não pode concluir e emitir um juízo de que “as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador” (VS, 38).
            Partindo desses apontamentos sobre o ‘poder’ concedido ao homem, vemos que é fácil acolher e identificar que existem certas “leis” que regem a nossa vida, desde o princípio da humanidade. E isso não é invenção da Igreja e nem dos seus pastores para ‘intimidar e governar’ as ovelhas do rebanho do Senhor. O Concílio Vaticano II não nega que a “atividade da razão humana” (VS, 40), deva ser empregada na “descoberta e na aplicação da lei moral” (VS, 40), entretanto, toda forma de soberania absoluta da razão deve ser refutada, pois o homem não é o autor de si mesmo e nem de suas próprias leis.
            A palavra “LEI”, devido aos abusivos usos que tomou ao longo da história da humanidade sempre, sempre traz para nós um ar negativo, um ar de impedimento à nossa liberdade. Mas é preciso realizar um resgate do termo empregado, para percebermos que as “leis” são, quando bem utilizadas, nossas auxiliadoras na busca de uma vida digna e moral. A Encíclica enfatiza qual a compreensão do Magistério sobre a lei dada a nós por Deus, reconhecendo nela um dom divino:
A lei moral provém de Deus e n’Ele encontra sempre a sua fonte: em virtude da razão natural, que deriva da sabedoria divina, ela é simultaneamente a lei própria do homem. De fato, a lei natural[4], como vimos, “não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus a concedeu na criação. A justa autonomia da razão prática significa que o homem possui em si mesmo a própria lei, recebida do Criador (VS, 40).

            Em suma verifica-se que não há realmente um conflito entre a lei de Deus e a liberdade do homem, ao contrário, a “liberdade do homem e lei de Deus encontram-se e são chamadas a compenetrar-se entre si, no sentido de uma livre obediência do homem a Deus e da benevolência gratuita de Deus ao homem” (VS, 40).
            A discussão sobre a lei e a vontade de Deus em estarem em choque com as ‘leis e a vontades do homem’ são tão antigas quanto o dualismo: corpo e alma. Alguns falam de uma heteronomia[5], numa concepção de que Deus, através da sua onipotência absoluta, impusesse ao homem sua vontade, negando-lhe assim a liberdade. Isso seria impossível de conciliar com a obra de redenção realizada por Cristo Jesus, que veio justamente elevar a dignidade humana ao seu mais alto grau de justa autonomia e liberdade. Outros, bem mais acertadamente, falam de uma teonomia[6], “... ou de teonomia participada, porque a livre obediência do homem à lei de Deus implica, de fato, a participação da razão e da vontade humana na sabedoria e providência de Deus” (VS, 41).
            Lutar contra a Lei de Deus, querer opor-se a ela com justificativas em favor da liberdade da pessoa humana, nada mais é que expressar uma má compreensão do que é liberdade e uma rejeição a disposição do plano de Deus na criação: “A lei, portanto, deve entender-se como uma expressão da sabedoria divina: ao submeter-se a ela, a liberdade submete-se à verdade da criação” (VS, 41).
            O salmista, iluminado pelo Espírito Santo, canta adequadamente essas palavras que resumem o que abordamos nesse ponto:
“Abre meus olhos para eu contemplar

as maravilhas que vêm de tua lei.

Eu sou um estrangeiro na terra,

não escondas de mim teus mandamentos”

(Sl 119, 18-19)

3. “... seu prazer está na lei de Iahweh, e medita sua lei, dia e noite.” (Sl 1, 2)

            Pelo que tratamos até aqui, percebe-se que ao homem é salutar entregar-se inteiramente à obediência a Deus, a qual o fará permanecer na verdade de sua própria existência e na compreensão adequada de sua dignidade como filho de Deus. A Gaudium et spes, ressalta a maravilha de uma liberdade não submissa às paixões e nem auto-suficiente: “A dignidade do homem exige que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão (...) O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes” (VS, 42).
            O homem é capaz de distinguir entre bem e mal, somente com o auxílio da graça de Deus que age em na atividade da razão humana, mas essa por si só não pode discernir corretamente, como tentaram empreender nossos primeiros pais no Jardim do Éden. A luz de Deus ilumina as trevas e as dúvidas da nossa própria consciência, revelando-nos o certo e o errado. E diz a Encíclica que “Deste modo, Deus chama o homem a participar da Sua providencia, querendo dirigir o mundo, por meio do próprio homem, ou seja, através do seu cuidado consciencioso e responsável: não só o mundo das coisas mas também o das pessoas humanas”. (VS, 43)
            De fato, a lei natural do homem está situada como expressão da lei eterna de Deus, visto que a criatura racional está em condição de submeter-se conscientemente à providência de Deus, sendo dessa participante no cuidado de si própria e dos outros. (Cf. VS, 43). E pela expressão lei natural, não entendemos uma rebeldia a lei eterna de Deus, visto que podemos deduzir que ela é assim chamada, “... não por referência à natureza dos seres irracionais, mas porque a razão, que a dita, é própria da natureza humana” (VS, 42).
            O Papa Leão XIII já afirmava na Carta Encíclica, Libertas praestantissimun, de 20 de junho de 1888, essa proximidade, ou mais, essa igualdade entre essas duas leis: “... a lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os inclina para o ato e o fim que lhes convém; ela é a própria razão eterna do Criador e governador do universo” (VS, 44). E, confirmando essa idéia temos o belíssimo ensinamento de Santo Tomás de Aquino que diz: “A lei natural outra coisa não é senão a luz da inteligência posta em nós por Deus. Por ela, conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei, deu-a Deus à criação” (CIC, 1955).
            Com o evento da Encarnação do Verbo, Jesus Cristo, cume de toda a Revelação Divina, inaugura-se uma nova perspectiva que resultará no que se denominou nova lei. Essa nova lei consiste propriamente no “... ‘cumprimento’ da lei de Deus em Jesus Cristo e no Seu Espírito: é uma lei ‘interior’ (cf. Jr 31, 31-33), ‘escrita, não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo não em tábuas de pedra, mas em tabuas de carne, nos nossos corações’ (2Cor 3, 3); uma lei de perfeição e de liberdade (cf. 2Cor 3, 17); é ‘a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus’ (Rm 8, 2)” (VS, 45).
            Cristo não aboliu a Lei e os Profetas, como Ele mesmo disse, veio para levar a pleno cumprimento a vontade de Deus revelada na Lei e nos Profetas (Cf. Mt 5, 17-20), portanto o termo nova lei, não entre em choque com a lei antiga, pois “... não se pode esquecer de que estas e outras distinções úteis referem-se sempre à lei, cujo autor é o mesmo e único Deus e o destinatário é o homem”(VS, 45).
            O Apóstolo Paulo discorre em muitos versículos sobre a questão da Lei. Chega a ser enfático sobre a imperfeição da “letra”, dos que vivem “a lei pela lei”, falando até de certa “escravidão” que a Lei submete àqueles que somente nela confiam. No entanto, ele reconhece “... que a Lei é santa, e santo, justo e bom é o preceito” (Rm 7, 12), e que a agora, com a vinda do Senhor Jesus Cristo, “... ele proclama é que Deus nos deu seu Filho ‘a fim de que o preceito da Lei se cumpra em nós’ (Rm 8, 4)” (Ratzinger, 1986, p. 39).


4. “... eles mostram a obra da lei gravada em seus corações...” (Rm 2, 15)

Já vimos anteriormente que nenhum tipo de coerção poderá promover no homem uma aceitação consciente da lei eterna de Deus em seu coração e para a vida em sociedade. Nesse sentido diz o Vaticano II no documento Dignitatis Humanae: “O homem ouve e reconhece os ditames da lei divina por meio da consciência, que ele deve seguir fielmente em toda a sua atividade, para chegar ao seu fim, que é Deus. Não deve, portanto, ser forçado a agir contra a própria consciência. Nem deve também ser impedido de atuar segundo ela...” (DH, 3).
Nos tempos contemporâneos ainda são muito latentes “os debates sobre natureza e liberdade” (VS, 46), dando até mesmo a impressão de essa ser uma discussão sem fim. Os avanços tecnológicos, psicológicos influenciam diretamente os homens e, parecem ao menos, reger os seus comportamentos mais particulares. Em alguns casos os defensores da ‘natureza do homem’ procuram enfatizar que não há nenhuma liberdade, nem física nem espiritual, quando se contraria os “dinamismos e (...) determinismos” (VS, 46) dessa natureza. Por outro lado “Outros moralistas, pelo contrário, preocupados em educar para os valores, mantêm-se sensíveis ao prestígio da liberdade” (VS, 46), entretanto colocam-na em oposição com a natureza material e biológica do homem, dificultando o consenso entre as duas correntes de pensamento. Nesse debate, o pano de fundo continua sendo a velha questão filosófica da relação corpo e alma, ou mente-corpo, que vêm desde os tempos socráticos e se arrasta pelos nossos dias, à medida que vai se desenvolvendo as pesquisas científicas.
A Igreja, também foi influenciada por essas diversas tendências de concepção do corpo e da alma, mas já faz tempo que vem defendendo uma unicidade plena entre essas duas partes necessárias para que haja um ser humano: corpo e alma. Não é cabível mais de aceitação um discurso sobre uma liberdade absoluta como diz a Encíclica:
Uma liberdade que pretenda ser absoluta acaba por tratar o corpo humano como um dado bruto, desprovido de significados e de valores morais enquanto aquela não o tiver moldado com o seu projeto. Conseqüentemente a natureza humana e o corpo aparecem como pressupostos ou preliminares, materialmente necessários para a opção da liberdade, mas extrínsecos à pessoa, ao sujeito e ao ato humano. Os seus dinamismos não poderiam constituir pontos de referencia para a opção moral, uma vez que as finalidades destas inclinações seriam só bens ‘físicos’, chamados por alguns ‘pré-morais’ (VS, 48)

A Igreja Católica, falando sobre a dignidade da pessoa humana, já declarou em vários pronunciamentos a sacralidade do corpo e também da alma e que, os dois juntos, formam o homem completo ao qual Cristo veio redimir: “A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente confiada a si própria, e é na unidade da alma e do corpo que ela é o sujeito dos próprios atos morais” (VS, 48). Essa unidade da pessoa humana, também se encontra descrita no Catecismo quando afirma: “O corpo do homem participa da dignidade da ‘imagem de Deus’: ele é corpo humano precisamente porque é animado pela alma espiritual, e é a pessoa humana inteira que está destinada a tornar-se, no Corpo de Cristo, o Templo do Espírito” (CIC, 364).
É preciso olhar com muito cuidado essas concepções que parecem resistir ao tempo e voltam (reaparecem) revestidas de novos argumentos, mas que são as evocações dos mesmos erros que a Igreja enfrentou nos primeiros séculos do cristianismo e, hoje define que: “Uma doutrina que separe o ato moral das dimensões corpóreas do seu exercício é contraria aos ensinamentos da Sagrada Escritura e da Tradição (...), porquanto reduzem a pessoa humana a uma liberdade ‘espiritual’, puramente formal” (VS, 49).
Santo Agostinho, em seus escritos quando falava da relação corpo e alma, mesmo tendo um cunho platônico, fortemente dualista, afirma que não há nada que aconteça ao corpo que não seja percebido pela alma e vice-versa; ou seja, corpo e alma, agem em consonância tanto para ao bem, quanto para o mal: “De fato, corpo e alma são inseparáveis: na pessoa, no agente voluntário e no ato deliberado, eles salvam-se ou perdem-se juntos” (VS, 49).
Diante de tudo isso o documento conclui que não há “espaço à divisão entre liberdade e natureza” (VS, 50), pois estas duas realidades estão ligadas entre si e auxiliam-se mutuamente. E, portanto, a lei moral não se refere nem somente ao corpo ou a alma, mas sim a pessoa humana, fundamentando-se “sobre a natureza corporal e espiritual” (VS, 50) da mesma.


5. “... mas no princípio não era assim...” (Mt 19, 8)

            A lei natural, já bem definida nos itens anteriores, engloba dois aspectos específicos: a universalidade e imutabilidade. A universalidade indica que essa lei, dada por Deus aos homens e iluminada constantemente por Ele, é válida para todos os homens dotados de razão, ela é “... universal nos seus preceitos e a sua autoridade estende-se a todos os homens. Esta universalidade não prescinde da individualidade dos seres humanos nem se opõe à unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa...” (VS, 51). Os homens e mulheres de todos os tempos são atingidos pela universalidade e imutabilidade da lei natural, pois são criados e chamados “a mesma vocação e o mesmo destino divino” (VS, 52); ou seja, a santidade e a vida eterna.
            Os avanços nas sociedades contemporâneas, o desejo de liberdade e a rebeldia a todos os dogmas e preceitos de forma geral, levaram muitos a desacreditarem de uma possibilidade da lei natural ser imutável. A encíclica levanta uma pergunta que, com certeza, urge em muitas mentes até hoje: “... será possível afirmar como válidas universalmente para todos e sempre permanentes certas determinações racionais estabelecidas no passado, quando se ignorava o progresso que a humanidade haveria de fazer posteriormente?” (VS, 53).
            Mesmo diante de tantos “progressos”, sempre haverá algo que perdure por todos os tempos da existência humana, “algo que transcende as culturas” (VS, 53), esse “algo” nada mais é do que “a natureza do homem” (VS, 53). Essa natureza permite ao homem ter a exata medida de seu ser, não se tornando escravo de nenhuma cultura ou modismo que venha a ferir a sua dignidade especifica de ser dotado de razão.
            A Igreja nunca esteve fechada aos progressos e desenvolvimentos, em qualquer que seja a área cientifica ou social, que possa melhorar a vida do ser humano. Portanto, reconhece que algumas coisas realmente mudam e devam mudar, entretanto “... subjacentes a todas as transformações há muitas coisas que não mudam cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre” (VS, 53).
            A lei natural não muda e não pode mudar. O que a Igreja, seus pastores e os fiéis são convidados a fazer é “... procurar e encontrar, para as normas morais universais e permanentes, a formulação mais adequada aos diversos contextos culturais, mas capaz de lhes exprimir incessantemente a atualidade histórica, de fazer compreender e interpretar autenticamente a sua verdade” (VS, 53). Atenção particular para o texto que nos propôs procurar e encontrar, pois a Igreja, em sua sabedoria, é testemunha fiel de que o Espírito Santo não deixará sem resposta aqueles que lhe pedem de todo o coração sua luz admirável.
           
 CONCLUSÃO


            O tema que foi abordado nesse trabalho é muito vasto e profundo. Sinto que não tocamos a ponta do imenso iceberg que envolve esses temas como: liberdade, lei natural, lei eterna de Deus etc. Apenas tentamos fazer uma abordagem bem superficial do texto da encíclica usando outros documentos da própria Igreja.
            A primeira conclusão que percebemos, foi que antes de qualquer coisa é preciso situar muito bem o que a doutrina católica entende por “liberdade”, onde está seu fundamento e para onde ela é ordenada. Pois se essa compreensão não for bem clara, fica quase impossível compreender a posição da Igreja em relação a algumas tendências que parecem totalmente antagônicas as propostas que a sociedade atual tem nos oferecido como moralidade.
Gostaria de concluir usando as palavras de Dom Antônio Monteiro, que em 1993 era presidente da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé: “Seja como for, como sucede em todos os documentos do Magistério, teremos todos de saber ler esta encíclica, com a hermenêutica que lhe é própria. Não poderemos nem deveremos dissociar nunca a encíclica ‘Veritatis Splendor’ do contexto da revelação, sobretudo da Pessoa de Jesus, do que Ele foi, do que Ele fez, do que Ele ensinou” (Sartori, 1999, p. 457). Então, mãos e olhos à “obra” nos oferecida. 
BIBLIOGRAFIA



BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição revisada de acordo com o texto oficial em latim. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2006.

COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino; PRIVITERA, Salvatore. “Liberdade” in Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de S.; FRANCO, Francisco Manoel de M. “Libertinagem” in Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Veritatis Splendor: sobre algumas questões fundamentais do ensinamento moral na Igreja. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1993 (Col. Documentos Pontifícios).

RATZINGER, Joseph Card. Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1986 (Congregação para a Doutrina da Fé).

SARTORI, Frei Luís Maria A. Encíclicas do Papa João Paulo II: o profeta do ano 2000. 2. ed. São Paulo: LTr, 1999.

VATICANO II. Declaração Dignitatis Humanae: sobre a liberdade religiosa. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1997 (Col. Documentos da Igreja, v. 1)



[1] Com exceção das citações bíblicas no corpo do texto dos documentos, todas as outras citações foram retiradas da Bíblia de Jerusalém, veja bibliografia no final.
[2] A Bíblia de Jerusalém traz na sua nota (d), para esse texto, a seguinte explicação: “Deve-se notar a diferença de perspectiva em relação a 1, 26-27: lá o próprio Deus cria o homem e a mulher a sua imagem, aqui “ser como deuses” (ou “como Deus”) seria uma empresa humana.
[3] “1. licenciosidade de costume, conduta de pessoa que se entrega imoderadamente a prazeres sexuais, a prática do libertino; 2. ant. irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos, esp. no que diz respeito à religião e às suas práticas ritualísticas...” (Houaiss; Villar; Franco, 2001, p. 1753).
[4] “A idéia de lei natural é de origem grega, e não bíblica. Em sua essência, essa idéia é humana e coincide com a experiência de originariedade e irredutibilidade de chamamento moral absoluto. Toda a parte sapiencial do Antigo Testamento não é outra coisa que a reflexão moral, patrimônio de uma comunidade que foi amadurecendo, aperfeiçoando-se e modificando-se através do tempo e das diversas situações culturais” (Compagnoni; Piana; Privitera, 1997, p. 694-695).
[5] Sujeição a uma lei exterior ou à vontade de alguém de fora; ausência de autonomia.
[6] Sujeição (obediência) a uma lei que se tem, por fé na Revelação Divina, Deus como autor e legislador.

Um mistério chamado: pecado


“Um mistério chamado: pecado”

Desde os primórdios da humanidade o homem e as diversas religiões lutam contra o mal e sua ação no mundo e na vida particular de cada um. O Cristianismo, bebendo das fontes da cultura judaica e grega, acolheu a palavra ‘pecado’ para definir os erros, as imoralidades, as iniqüidades e o rompimento do relacionamento entre Deus e os homens. No entanto, definir o pecado parece ser uma tarefa quase impossível, se pensamos em todo o contexto do mistério do mal e do mistério que envolve o primeiro pecado, ou seja, o pecado original.
Algumas definições viram no pecado como um atrativo enganador, algo prazeroso, mas que nos prende e desvia o nosso olhar do Criador; concepção essa expressa radicalmente por Santo Agostinho na frase por ele cunhada: “o pecado é aversão a Deus e conversão as criaturas”. Já Santo Tomás de Aquino, pensa que se o homem soubesse mesmo onde está ‘pisando’ tomaria mais cuidado e, talvez, nem pecaria tanto, pois para ele o pecado é como uma ‘pintura’ ou ‘moldura’ que reveste de bem aquilo que é mau. Ao longo da história da Igreja, os teólogos lançaram suas flechas para todos os lados tentando atingir o pecado (acertar o alvo, aludimos aqui a própria etimologia da palavra pecado) e defini-lo de uma vez por todas. Entretanto, o que conseguiram foi abrir mais e mais leques de reflexão sobre o assunto. Disso tudo, temos várias definições: o pecado como alienação humana; como processo que se desencadeia na separação de Deus; como desgraça que desumaniza e é desumanizante.
E temos ainda, analisando pela exegese e hermenêutica, as palavras da Sagrada Escritura que tratam sobre o assunto, dando as seguintes definições: hattá – uma ação externa, que representa o erro; awôn – significando uma pessoa que não consegue se desenvolver bem; pésha – que faz menção ao rompimento da Aliança; rashá – que faz referência àqueles que praticam o mal e perseguem os bons. Por vezes, o pecado foi olhado fora do pecador, noutras vezes como parte integrante do pecador. Como nos explana Frei Antonio Moser, ora o enfoque estava sobre o objeto (o pecado cometido), ora sobre o sujeito (o pecador). Mais popularmente o pecado chegou até os nossos dias como ‘grave ofensa a Deus, à Igreja e aos irmãos’. E, ainda numa visão mais personalista, o pecado tomou forma de um grande entrave na vida pessoal do cristão.
Com o passar dos anos, os olhos dos teólogos, principalmente dos se encontram na América Latina, abriram-se para realidade social, estrutural, e sócio-estrutural da qual está imbuída o pecado. Esse foi um grande avanço nos estudos sobre o Sacramento da Reconciliação. Pois, percebeu-se que com os nossos pecados, não ferimos Deus (que não pode ser atingido pelos nossos erros), não ferimos a Igreja (que é essencialmente Santa, sendo apenas ‘pecadora’ por causa de seus membros) e não ferimos somente a nós mesmos (tendo o pecado como uma simples ofensa ao próprio ego). Mais que isso, ferimos a sociedade, a humanidade, ferimos até mesmo o planeta e o ambiente em que vivemos. Quando pecamos damos um passo atrás na construção do Reino de Deus, atrapalhamos (e podemos atrapalhar) o avanço espiritual e social da comunidade. E isso não se resume ao grupo daqueles que crêem; o pecado daqueles que dizem crer acaba atingindo aqueles que decidiram não crer em nada. Essa é a realidade de muitas estruturas de pecado levantadas em nossos dias. E, para mim, resumidamente a mais adequada aproximação de definição do pecado: pecar é tirar um tijolo da construção do Reino de Deus e, conforme o ato, não só esconde-lo, mas destruí-lo, atrasando e dificultando as ‘obras de construção’ da família universal, tanto desejada pelo Senhor.
Essa aversão ao plano de Deus para a história da humanidade vê-se muito bem hoje em tantos ‘projetos intimistas, egoístas e individualistas’ espalhados pelo mundo e divulgados pela mass média. Os inúmeros grupos econômicos, sociais, culturais e religiosos vão se fechando cada vez mais em si mesmos e deixando à beira do caminho muitas pessoas (e até nações inteiras) que não atendem aos seus critérios e exigências. Por exemplo: o G20, não é uma forma disfarçada de dizer que as centenas de outros países estão ‘fora’ de seus planos econômicos e sociais definidos para o futuro?
Para por um fim a tudo isso, ou pelo menos amenizar é preciso tomar a atitude de acolher a graça da conversão. Digo acolher, pois essa graça paira sobre a humanidade. Enquanto pensarmos que a conversão parte apenas de uma decisão nossa, de um esforço pessoal, seremos como aquele viciado em cocaína que diz todos os dias com a seringa na mão: “eu paro quando eu quiser”. Entretanto, enquanto cada ser humano, desde o mais simples ao mais importante eclesiástico da face da terra, não ‘decidir-se pelo Reino de Deus’, acreditando que um anjo virá do céu para dizer-lhe: “vá em paz e não peque mais”, seremos como o louco que segura uma peneira debaixo de uma torneira que não jorra água. O pecado nós fazemos, a graça Deus dá. Como dizia um santo: “é necessário que você destrua o que você fez para Deus poder construir o que ele quer”, ou seja, como Deus vai ‘converter’ aquele que não quer ser ‘convertido’?
Sabemos, por uma simples experiência, que para a água passar do estado líquido para o estado gasoso é preciso ser elevada a mais de 100ºC, e isso deve ser ‘penoso, dolorido’. Ao que cabe perguntarmo-nos: Como queremos passar de um estado de pecado para um estado de graça com um simples estalar do ‘dedo de Deus’. Não foi esse o caminho ensinado por Jesus e pelos Apóstolos no início da Igreja, não adianta disfarçar nossa caminhada cristã tentando inventar modismos que não se adéquam ao Evangelho.
As pseudo-conversões, empobrecem a vida da comunidade cristã, pois gera diversos vícios no seu meio: pessoas que acham que são santas; pessoas que acham que todos os outros são pecadores; e pessoas que acham que nunca serão santas. E quantos outros erros não poderíamos destacar: os escrupulosos, os legalistas, os céticos.
Ao olharmos bem o Evangelho vamos ver que Jesus não via ninguém, ninguém mesmo, como ‘um santinho’, porém, não via ninguém como um ‘pecado nato’, irreconciliável. O que Ele apresentou, e isso vemos nitidamente na parábola do fariseu e do publicano, é que os bons deveriam cuidar para não se vangloriarem de sua condição e que os maus não deveriam se desesperar da sua condição. Podemos inferir aqui, que conversão pra Jesus, não é deixar definitivamente o pecado... mas sim reconhecer-se pecador, lutar com o pecado, e contar todos os dias com o auxilio da graça divina.

Duc in altum (Lc 5,4)



Sobre a Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte de João Paulo II, de 06.01.2001

“Duc in altum” – (Lc 5,4)

            Sigamos em frente, com esperança! Com essas palavras o saudoso Papa João Paulo II, hoje beato, iniciava o texto conclusivo da Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. Chamou à atenção a frase, pois pensei o seguinte: é preciso seguir, seguir em frente, não se pode mais voltar atrás na caminhada cristã. Entretanto, não podemos seguir de qualquer jeito, sem rumo, sem lenço e sem documento como cantava uma canção. É preciso seguir “com esperança”! Essa esperança é com certeza em Cristo Jesus, e não pode ser em outro, como nos diz o documento: “Certamente não nos move a esperança ingênua de que possa haver uma formula mágica para os grandes desafios do nosso tempo; não será uma formula a salvar-nos, mas uma pessoa, e a certeza que ela nos infunde: Eu estarei convosco!” (NMI, 29).
            Mas para se ter tamanha convicção e esperança em Cristo, é preciso conhecê-Lo, ter com Ele uma experiência marcante, profunda e pessoal. Reconhecemos uma pessoa quando olhamos para o seu rosto, assim, devemos também desvendar o Rosto de Cristo, que se apresenta magistralmente no documento em três dimensões: O Rosto do Filho, o Rosto Doloroso e o Rosto Ressuscitado. Assim como os gregos que disseram ao Apóstolo Felipe: “Queríamos ver a Jesus” (Jo 12,21), toda Igreja de hoje, e principalmente os “homens do nosso tempo, talvez sem se darem conta, pedem aos crentes de hoje não só que lhes “falem” de Cristo, mas também que de certa forma lho façam “ver”. (NMI, 16). E como poderemos fazer que o Rosto de Cristo seja visto no mundo?
            Sem dúvida nenhuma o melhor meio de apresentar Cristo verdadeiramente ao mundo é pelo testemunho cristão, que é inegavelmente o testemunho do amor como diz a Escritura: “É por isto que todos saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35) e ainda “Assim como eu vos amei, também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34). Esse amor deve transpor todas as barreiras religiosas e todos os limites políticos e nacionalistas, na vivencia concreta de uma espiritualidade de comunhão, que significa, entre outras coisas: “... a capacidade de ver antes de mais nada o que há de positivo no outro, para acolhê-lo e valorizá-lo como dom de Deus: ´um dom para mim`...”. Esse amor não pode ser segundo meus critérios, mas sim os de Deus!
            Vamos ao largo, para águas mais profundas, pois no “... caminho, acompanha-nos a Virgem Santíssima” (NMI, 58), apontada pelo Papa como a “aurora luminosa e guia segura do nosso caminho” (NMI, 58). Vamos com afinco, pois “... o nosso passo tem de tornar-se mais rápido para percorrer as estradas do mundo” (NMI, 58). Esse mundo novo da globalização que não traz apenas benefícios, mas sim muitos problemas, também globalizados, como o “desequilíbrio ecológico” (NMI, 51), o “problema da paz” (NMI, 51), o “vilipêndio dos direitos humanos fundamentais” (NMI, 51) e tantos outros que seguiriam uma lista imensa, infelizmente.
            Porém, vamos com esperança, com fé e com caridade. Certos de que não caminhamos sozinhos; caminhamos com a Igreja, com Maria, com o Papa e com Cristo que “... se põe a caminho conosco pelas nossas estradas deixando-se reconhecer, como sucedeu aos discípulos de Emaús, ´ao partir do pão` (Lc, 24, 35)” (NMI, 59). Então, vamos em paz, paz inquieta, duc in altum. Amém!




            

Testemunho Vocacional


EU E O PADRE DAVID

            Estamos no Ano Sacerdotal! A convite de Sua Santidade, o Papa, Bento XVI, devemos fazer desse ano um profundo momento de reflexão sobre a dignidade do ministério ordenado, e intensificar nossas orações de intercessão e ação de graças por tantos homens que ao longo da história da Igreja deram o seu "SIM" na particularidade da vida e presbiteral.
            Penso que todos nós, católicos praticantes ou não, já tivemos uma bela experiência com os pastores da Igreja, os Padres. Quantas vezes esses homens de carne e osso foram verdadeiros "anjos" em nossas vidas e em nossas famílias, trazendo palavras que pareciam cair diretamente dos lábios de Deus, confortanto os nossos corações e até mudando nossos conceitos etc.
            Comigo não foi diferente! Desde que tinha meses de vida vi a intervenção dos Padres em minha vida formando a minha fé e minha caminhada vocacional. Quando pequeno, fui encaminhado para adoção por Frei José Maria Lorenzetti; daí para frente os Padres tiveram ativa influência sobre mim. Seria uma lista grandiosa de todos que foram canais da graça de Deus.
            Gostaria de partilhar com todos os paroquianos e visitantes da Catedral sobre a influência de um Sacerdote em particular, Pe. David, pároco desta comunidade. Conheci-o em Santa Cruz, quando foi pároco da Paróquia São Benedito. Logo que conversamos não tive dúvidas em pedir que ele me orientasse espiritualmente. Eu trabalhava na Casa de Oração, já havia tentado tantas vezes ingressar-me no caminho vocacional, sem obter sucesso.
            Nossas conversas foram poucas, mas frutuosas. Ele me orientou sobre minha vocação, sobre minhas enfermidades e até tivemos a oportunidade de fazer alguns trabalhos juntos. Como um comenta, tão rápido veio, tão rápido se foi. Foram apenas 10 meses... e daí já pensei: "mais um diretor espiritual que vai embora". No entanto, suas palavras precisas, regadas sempre por um "de certa forma", me levaram a não esconder os dons que Deus me concedeu. A partir   daí nossos contatos foram bem raros.
Em 2005, começei a ajudar o Seminário Diocesano arrecadando doações de alimentos e produtos de limpeza em Santa Cruz. Tinha saído do emprego, pois sentia uma vontade de entregar-me a Deus consagrando-O toda minha vida.
Nisso resolvi escrever uma carta para o Padre David. Nem sei por que motivo o escolhi... talvez seja por causa de suas "perguntinhas indiretas" quando ele quer que nos mechamos para fazer alguma coisa pelo Reino de Deus.
Escrevi a carta, nem corrigi os erros e enviei pelo correio. Na carta, lembro-me bem dessas palavras: "Padre Davi, o senhor e eu sabemos que Deus quer alguma coisa de mim, mas qual é?". Por isso escrevi. Sentia que ele podia me ajudar a perguntar a Deus qual era a sua vontade sobre mim. Dias se passaram... e então.
O Padre Gilson, recém-ordenado, começou com uma conversa estranha se eu não queria entrar no Seminário. De primeiro instante, disse que já me sentia um tanto "velho" para pensar nisso, porém demostrei entusiasmo Então, ele me disse: "Olha o Padre Davi, leu sua carta e já falou com o Bispo, e ele também já tem conhecimento do que você escreveu". Tremi !!!
Queria dizer que ele não podia ter feito isso, mas ao mesmo tempo fiquei feliz pois sabia que Deus podia me responder ainda com mais clareza pelo Senhor Bispo, já que, como afirma a Igreja, ele é o primeiro responsável pelas vocações em sua Diocese. Então aguardei e rezei.
Passado uns dias, liguei para o Sr. Bispo e marcamos uma conversa. Foi uma coisa bem tranquila. Falamos mais sobre "seguir Jesus" do que sobre sacerdócio ou entrada no Seminário.
Pois bem, nem uma semana depois e um telefonema muda toda minha vida. "Agnaldo, você foi aceito para entrar no Seminário". Que convite divino, era a Igreja e seus pastores me dizendo: "Vem e segue-me. Arrisque-se a seguir Jesus radicalmente. Mas não demores mais!!!"
Padre Gilson (outro Sacerdote especial em minha vida) trouxe-me no Seminário e com poucos minutos de conversa tudo estava resolvido: tinha menos de 15 dias para ajeitar tudo e entrar no Seminário Diocesano. Foi uma correria, roupas, livros, deixar os programas de rádio, minha saúde, minha mãezinha etc. Ufa!!!
Tudo pronto ou não! Dia 15 de agosto de 2006, eu adentrava os portões do Seminário onde estou até hoje.
O que posso dizer hoje sobre esse Sacerdote se resume nisso: "Padre Davi, se um dia eu for Sacerdote,  o senhor é culpado. Quando eu nem mesmo acreditava em mim, o senhor acreditou. Obrigado!
Agnaldo (seminarista diocesano)

O que é mesmo a solidão, hein?


Solidão não é a falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo... Isto é carência.
Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar... Isto é saudade.
Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vezes, para realinhar os pensamentos... Isto é equilíbrio.
Solidão não é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsoriamente para que revejamos a nossa vida... Isto é um princípio da natureza.
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é circunstância.
Solidão é muito mais que isto.
Solidão é
quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma...

Chico Buarque de Holanda