RESENHA SOBRE “A LIBERDADE E A LEI”
NA ENCÍCLICA VERITATIS SPLENDOR
A Carta Encíclica Veritatis Splendor é um documento
importantíssimo, compilado no pontificado do Papa João Paulo II, de saudosa memória,
que traz especificamente no seu segundo capítulo uma explanação sobre a doutrina
da Igreja sobre a liberdade humana, na tentativa de orientar os pastores e
esclarecer os fiéis na vivência autêntica da vida cristã.
Em se tratando de “liberdade”, temos
muitas teorias filosóficas e teológicas que entram em choque, pois as diversas opiniões
acabam dando ao assunto interpretações diversas, o que dificulta um consenso entre
os estudiosos sobre o que realmente significa a liberdade humana. O documento
procura a luz da Palavra de Deus e da fé, responder aos cristãos da época
(1993) e de hoje, no capítulo segundo, qual deve ser o seu comportamento moral
em relação a tantas vertentes e proposições que surgem a cada momento.
Sem dúvida que esse assunto
“complicado e urgente” não foi esgotado pela Encíclica que tinha um objetivo
mais abrangente como traz descrito em seu texto: “Hoje, porém, parece necessário refletir sobre o conjunto do
ensinamento moral da Igreja, com a finalidade concreta de evocar algumas
verdades fundamentais da doutrina católica que, no atual contexto, correm o
risco de serem deformadas ou negadas” (VS, 4).
Aqui, nesse pequeno ensaio, trabalharemos
apenas a questão do segundo capítulo que traz como título “Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo (Rm 12,2): A
Igreja e o discernimento de algumas tendências de Teologia Moral hodierna”, na
abordagem do tema do primeiro ponto intitulado “A liberdade e a lei”.
Para tal tarefa utilizaremos como texto
base, a própria Carta Encíclica Veritatis
Splendor e, alguns textos auxiliares no campo teológico, com o intuito de
enriquecer ainda mais nossa pesquisa e, particularmente em especial, a Sagrada
Escritura[1]
que é para nós, que cremos na Revelação Divina, a própria Palavra de Deus, base
segura da moral cristã.
Capítulo Único
A ESSENCIAL
SUBORDINAÇÃO DA RAZÃO E DA
LEI
HUMANA À SABEDORIA DE DEUS E À SUA LEI
A palavra “liberdade” foi muito explorada pelos
pensadores desde os remotos tempos da Filosofia Grega. Na Teologia ela ocupa
também um espaço privilegiado devido à grande discussão em torno da
responsabilidade de cada indivíduo diante de um Deus onipresente, onipotente e
onisciente.
Também nos tempos modernos os “gritos de liberdade” são
muitos e variados, fala-se de liberdade política, liberdade de imprensa,
liberdade religiosa, liberdade de pensamento, liberdade de escolha sexual; e
segue a lista com muitas outras possibilidades.
A Igreja, sendo guardiã da mensagem de salvação,
deixada por Jesus Cristo, também teve que, ao longo dos séculos, estudar e
discernir e emitir, através do Magistério, qual o seu conceito sobre a
“liberdade”, principalmente diante da radicalidade do Evangelho, a Boa Nova de
Jesus Salvador, que fez das palavras proféticas de Isaías, suas próprias,
quando disse na sinagoga de Nazaré: “O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para
evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos e
aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor”
(Lc 4, 18-19, grifo nosso). A
Igreja, iluminada pelo Espírito Santo, entendeu desde muito cedo que o Senhor
Jesus, não estava falando apenas de uma libertação
de presos dos calabouços romanos e, que não se tratava apenas de uma liberdade de oprimidos pelo governo
político. Cristo, preocupado com o homem completo, queria antes de tudo “sanar”
a ferida e a raiz de todos os males: o pecado.
Portanto, aqui se entende a libertação
e a liberdade da consciência do
homem: “Por sua cruz e ressurreição Cristo realizou a nossa redenção: esta é a
liberdade em seu sentido mais forte, já que ela nos libertou do mal mais
radical, isto é, do pecado e do poder da morte” (Ratzinger, 1986). Claro que
nem Cristo e nem a Igreja negam tantos outros aspectos externos e sociais que
requerem a liberdade e libertação da humanidade, mas não abordaremos esse ponto
aqui.
O Dicionário de Teologia Moral acentua que a Igreja
fala de uma liberdade moral, para
não entrar em choque com tantos outros conceitos existentes e, que não partem
do mesmo fundamento para discorrer em seus discursos: “A liberdade moral é, com
efeito, liberdade concreta. Em outras palavras, coincide com a capacidade
efetiva que a pessoa tem para orientar a própria existência” (Compagnoni;
Piana; Privitera, 1997).
O conceito da Igreja, acolhido e meditado da Sagrada
Escritura, deve ser bem preciso e abrangente, pois já alertava São Paulo, na
Carta aos Gálatas: “Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto, que a
liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pela caridade, colocai-vos a
serviço uns dos outros” (Gl 5, 13).
A nossa liberdade esbarra constantemente em muitos
limites, pois ela é em si mesma limitada. Isso advém de sermos criaturas e só
Deus ser o Criador; mesmo sendo feitos a Sua imagem e semelhança (Gn 1, 26),
não gozamos da mesma e idêntica liberdade de Deus. Portanto, não é a liberdade
absolutizada que deve ditar os parâmetros do agir moral cristão, pois junto a
ela temos que equiparar o que é verdadeiro e o que é justo: “Verdade e justiça
são, assim, a medida da verdadeira liberdade. Afastando-se desse fundamento, o
homem, ao tomar-se por Deus, cai na mentira e, ao invés de se realizar,
destrói-se” (Ratzinger, 1986).
1. “Mas da árvore do conhecimento do bem
e do mal não comerás...” (Gn 2, 17)
Na passagem do Gênesis, num diálogo ludibrioso, a
“antiga serpente”, que representa o diabo, o pai da mentira, tenta enganar Eva
sobre como Deus havia disposto as coisas no Paraíso para eles, quando diz:
“Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?”. Com
esta pergunta, percebe-se algo bem latente em nossos dias, que muitos acreditam
que a verdadeira liberdade consiste em: poder
fazer tudo, na hora e quando quisermos; pois ser livre é ser dono-de-si. E,
levantando essa bandeira várias nações proclamam independência de todos os
valores morais, principalmente os cristãos, porque querem ser totalmente
livres.
A Encíclica Veritatis Splendor traz para esse dilema
uma interpretação teológica sobre a Revelação Divina, muito interessante, onde
a imagem, o relato do Gênesis “ensina que não
pertence ao homem o poder de decidir o bem e o mal, mas somente a Deus”
(VS, 35). Por isso, justifica-se o impedimento de comer da ‘árvore da ciência
do bem e do mal’, ou em outras palavras, o limite imposto para que eles não cedessem
à tentação de serem “... como deuses, versados no bem e no mal[2]”
(Gn 3, 5).
Nesse ponto da Encíclica aborda-se um problema
nevrálgico para as diversas concepções sobre a liberdade humana: a liberdade humana é ilimitada ou limitada?
E a encíclica diz: “Mas esta liberdade não é ilimitada: deve deter-se diante da
“arvore da ciência do bem e do mal, chamada que é a aceitar a lei moral que
Deus dá ao homem” (VS, 35).
Deus, sendo o Bem Supremo, conhece o que é melhor para
nós e, em Sua excelsa bondade e amor, estabelece para nós certas regras e leis
(os mandamentos). Bem fácil de compreender para aqueles que gozam de um pouco
de critério cristão e autêntica fé num Deus que é amor: Aquele que nos criou sabe o que é melhor para nós!
Não são poucos que no mundo atual, assim também como na
época da Carta Encíclica (1993), buscam semear confusão entre aqueles que manifestam
uma fé monoteísta, principalmente os cristãos, acusando-os de estarem
profundamente enganados no conceito de liberdade. Para eles, existe um suposto conflito entre liberdade e a lei
(VS, 35), onde para que uma possa existir a outra deva ser plenamente eliminada.
Aqui se transforma o desejo de liberdade numa luta ferrenha pela libertinagem[3],
que se trata nada mais nada menos do que o uso indevido e desenfreado da
liberdade, para uma linguagem teológica, diríamos: pecado.
A evolução dos conhecimentos humanos, a autonomia no
trabalho e na produção de máquinas e computadores, levou a humanidade a
explorar os limites de sua racionalidade e, junto a isso, cogitou-se muito
fortemente a possibilidade de uma “completa
soberania da razão no âmbito das normas morais, relativas à reta ordenação
da vida neste mundo: tais normas constituiriam o âmbito de uma moral puramente
‘humana’...” (VS, 36).
Desta maneira o homem seria o autor e o juiz de seus
próprios atos morais, pois até mesmo teria a soberania de “... ‘criar os
valores’, e gozaria de uma primazia sobre a verdade, até ao ponto de a própria
verdade ser considerada uma criação da liberdade” (VS, 35).
Para amenizar esse conflito, alguns teólogos moralistas
tentaram introduzir, na vida cristã e na Igreja, “uma nítida distinção,
contrária à doutrina católica, entre uma ordem
ética, que teria origem humana e valor apenas temporal, e uma ordem de
salvação, para a qual contariam somente algumas intenções e atitudes
interiores relativas a Deus e ao próximo” (VS, 37). Entretanto, logo se percebeu
a incompatibilidade dessa teoria com a Palavra de Deus, o Magistério e a
Sagrada Tradição. Pois a lei moral, a moral do cristão, não é resultado de uma
adaptação ou adequação da Revelação Divina ao contexto histórico vivenciado pelo
sujeito individual, ao contrário, somos nós que devemos nos deixar “formar” por
Deus.
2. “... e o abandonou nas mãos de sua
própria decisão” (Eclo 15, 14b)
A
“verdadeira liberdade”, diz o Concílio Vaticano II, na Gaudium et spes, consiste em reconhecer que: “Deus quis deixar o
homem entregue à sua própria decisão, para que busque por si mesmo o seu
Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele” (VS,
38). A aceitação de Deus, por parte do homem é uma livre escolha, uma resposta.
Ao homem Deus também concedeu poder
de governar toda a terra, quando disse: “... enchei a terra e submetei-a;
dominai...” (Gn 1, 28), mas isso não indica de forma alguma que o homem detém
plena liberdade para fazer das criaturas o que ele quiser, pois sua posição é
de administrador, de governo e não de possuidor pleno dessas mesmas criaturas,
onde a Gaudium et spes chama a
atenção para o cuidado com esse aspecto lembrando que “as coisas criadas e as
próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente
descobrindo, utilizando e organizando” (VS, 38). Portanto a humanidade não pode
concluir e emitir um juízo de que “as criaturas não dependem de Deus e que o
homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador” (VS, 38).
Partindo desses apontamentos sobre o
‘poder’ concedido ao homem, vemos que é fácil acolher e identificar que existem
certas “leis” que regem a nossa vida, desde o princípio da humanidade. E isso
não é invenção da Igreja e nem dos seus pastores para ‘intimidar e governar’ as
ovelhas do rebanho do Senhor. O Concílio Vaticano II não nega que a “atividade da razão humana” (VS, 40),
deva ser empregada na “descoberta e na aplicação da lei moral” (VS, 40), entretanto,
toda forma de soberania absoluta da razão deve ser refutada, pois o homem não é
o autor de si mesmo e nem de suas próprias leis.
A palavra “LEI”, devido aos abusivos
usos que tomou ao longo da história da humanidade sempre, sempre traz para nós
um ar negativo, um ar de impedimento à nossa liberdade. Mas é preciso realizar
um resgate do termo empregado, para percebermos que as “leis” são, quando bem
utilizadas, nossas auxiliadoras na busca de uma vida digna e moral. A Encíclica
enfatiza qual a compreensão do Magistério sobre a lei dada a nós por Deus,
reconhecendo nela um dom divino:
A lei moral
provém de Deus e n’Ele encontra sempre a sua fonte: em virtude da razão
natural, que deriva da sabedoria divina, ela é simultaneamente a lei própria do homem. De fato, a lei
natural[4],
como vimos, “não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós.
Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz
e esta lei, Deus a concedeu na criação. A justa autonomia da razão prática
significa que o homem possui em si mesmo a própria lei, recebida do Criador
(VS, 40).
Em suma verifica-se que não há
realmente um conflito entre a lei de Deus e a liberdade do homem, ao contrário,
a “liberdade do homem e lei de Deus
encontram-se e são chamadas a compenetrar-se entre si, no sentido de uma
livre obediência do homem a Deus e da benevolência gratuita de Deus ao homem”
(VS, 40).
A discussão sobre a lei e a vontade
de Deus em estarem em choque com as ‘leis e a vontades do homem’ são tão antigas
quanto o dualismo: corpo e alma. Alguns falam de uma heteronomia[5],
numa concepção de que Deus, através da sua onipotência absoluta, impusesse ao
homem sua vontade, negando-lhe assim a liberdade. Isso seria impossível de
conciliar com a obra de redenção realizada por Cristo Jesus, que veio
justamente elevar a dignidade humana ao seu mais alto grau de justa autonomia e liberdade. Outros, bem
mais acertadamente, falam de uma teonomia[6],
“... ou de teonomia participada,
porque a livre obediência do homem à lei de Deus implica, de fato, a
participação da razão e da vontade humana na sabedoria e providência de Deus”
(VS, 41).
Lutar contra a Lei de Deus, querer
opor-se a ela com justificativas em favor da liberdade da pessoa humana, nada
mais é que expressar uma má compreensão do que é liberdade e uma rejeição a
disposição do plano de Deus na criação: “A lei, portanto, deve entender-se como
uma expressão da sabedoria divina: ao submeter-se a ela, a liberdade submete-se
à verdade da criação” (VS, 41).
O salmista, iluminado pelo Espírito
Santo, canta adequadamente essas palavras que resumem o que abordamos nesse
ponto:
“Abre meus olhos para eu contemplar
as maravilhas que vêm de tua lei.
Eu sou um estrangeiro na terra,
não escondas de mim
teus mandamentos”
(Sl 119, 18-19)
3. “... seu prazer está na lei de Iahweh, e medita sua lei, dia e noite.”
(Sl 1, 2)
Pelo
que tratamos até aqui, percebe-se que ao homem é salutar entregar-se inteiramente
à obediência a Deus, a qual o fará permanecer na verdade de sua própria
existência e na compreensão adequada de sua dignidade como filho de Deus. A Gaudium et spes, ressalta a maravilha de
uma liberdade não submissa às paixões e nem auto-suficiente: “A dignidade do
homem exige que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão
(...) O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das
paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com
diligente iniciativa os meios convenientes” (VS, 42).
O homem é capaz de distinguir entre
bem e mal, somente com o auxílio da graça de Deus que age em na atividade da
razão humana, mas essa por si só não pode discernir corretamente, como tentaram
empreender nossos primeiros pais no Jardim do Éden. A luz de Deus ilumina as
trevas e as dúvidas da nossa própria consciência, revelando-nos o certo e o errado.
E diz a Encíclica que “Deste modo, Deus chama o homem a participar da Sua
providencia, querendo dirigir o mundo, por meio do próprio homem, ou seja,
através do seu cuidado consciencioso e responsável: não só o mundo das coisas
mas também o das pessoas humanas”. (VS, 43)
De fato, a lei natural do homem está
situada como expressão da lei eterna de Deus, visto que a criatura racional
está em condição de submeter-se conscientemente à providência de Deus, sendo
dessa participante no cuidado de si própria e dos outros. (Cf. VS, 43). E pela
expressão lei natural, não entendemos
uma rebeldia a lei eterna de Deus,
visto que podemos deduzir que ela é assim chamada, “... não por referência à
natureza dos seres irracionais, mas porque a razão, que a dita, é própria da
natureza humana” (VS, 42).
O Papa Leão XIII já afirmava na
Carta Encíclica, Libertas praestantissimun,
de 20 de junho de 1888, essa proximidade, ou mais, essa igualdade entre
essas duas leis: “... a lei natural é a
mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os inclina para o ato e o fim que lhes convém; ela
é a própria razão eterna do Criador e governador do universo” (VS, 44). E,
confirmando essa idéia temos o belíssimo ensinamento de Santo Tomás de Aquino
que diz: “A lei natural outra coisa não é senão a luz da inteligência posta em
nós por Deus. Por ela, conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar.
Esta luz ou esta lei, deu-a Deus à criação” (CIC, 1955).
Com o evento da Encarnação do Verbo,
Jesus Cristo, cume de toda a Revelação Divina, inaugura-se uma nova perspectiva
que resultará no que se denominou nova lei. Essa nova lei consiste
propriamente no “... ‘cumprimento’ da lei de Deus em Jesus Cristo e no Seu
Espírito: é uma lei ‘interior’ (cf. Jr 31, 31-33), ‘escrita, não com tinta, mas
com o Espírito de Deus vivo não em tábuas de pedra, mas em tabuas de carne, nos
nossos corações’ (2Cor 3, 3); uma lei de perfeição e de liberdade (cf. 2Cor 3,
17); é ‘a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus’ (Rm 8, 2)” (VS, 45).
Cristo não aboliu a Lei e os
Profetas, como Ele mesmo disse, veio para levar a pleno cumprimento a vontade
de Deus revelada na Lei e nos Profetas (Cf. Mt 5, 17-20), portanto o termo nova lei, não entre em choque com a lei
antiga, pois “... não se pode esquecer de que estas e outras distinções úteis
referem-se sempre à lei, cujo autor é o mesmo e único Deus e o destinatário é o
homem”(VS, 45).
O
Apóstolo Paulo discorre em muitos versículos sobre a questão da Lei. Chega a
ser enfático sobre a imperfeição da “letra”, dos que vivem “a lei pela lei”,
falando até de certa “escravidão” que a Lei submete àqueles que somente nela
confiam. No entanto, ele reconhece “... que a Lei é santa, e santo, justo e bom
é o preceito” (Rm 7, 12), e que a agora, com a vinda do Senhor Jesus Cristo,
“... ele proclama é que Deus nos deu seu Filho ‘a fim de que o preceito da Lei
se cumpra em nós’ (Rm 8, 4)” (Ratzinger, 1986, p. 39).
4. “... eles mostram a obra da lei
gravada em seus corações...” (Rm 2, 15)
Já vimos anteriormente que nenhum tipo de coerção
poderá promover no homem uma aceitação consciente da lei eterna de Deus em seu
coração e para a vida em sociedade. Nesse sentido diz o Vaticano II no documento
Dignitatis Humanae: “O homem ouve e
reconhece os ditames da lei divina por meio da consciência, que ele deve seguir
fielmente em toda a sua atividade, para chegar ao seu fim, que é Deus. Não
deve, portanto, ser forçado a agir contra a própria consciência. Nem deve
também ser impedido de atuar segundo ela...” (DH, 3).
Nos tempos contemporâneos ainda são muito latentes “os
debates sobre natureza e liberdade”
(VS, 46), dando até mesmo a impressão de essa ser uma discussão sem fim. Os
avanços tecnológicos, psicológicos influenciam diretamente os homens e, parecem
ao menos, reger os seus comportamentos mais particulares. Em alguns casos os
defensores da ‘natureza do homem’ procuram enfatizar que não há nenhuma
liberdade, nem física nem espiritual, quando se contraria os “dinamismos e
(...) determinismos” (VS, 46) dessa natureza. Por outro lado “Outros moralistas, pelo contrário,
preocupados em educar para os valores, mantêm-se sensíveis ao prestígio da
liberdade” (VS, 46), entretanto colocam-na em oposição com a natureza material
e biológica do homem, dificultando o consenso entre as duas correntes de
pensamento. Nesse debate, o pano de fundo continua sendo a velha questão
filosófica da relação corpo e alma, ou mente-corpo, que vêm desde os tempos
socráticos e se arrasta pelos nossos dias, à medida que vai se desenvolvendo as
pesquisas científicas.
A Igreja, também foi influenciada por essas diversas
tendências de concepção do corpo e da alma, mas já faz tempo que vem defendendo
uma unicidade plena entre essas duas partes necessárias para que haja um ser
humano: corpo e alma. Não é cabível mais de aceitação um discurso sobre uma
liberdade absoluta como diz a Encíclica:
Uma liberdade que pretenda ser absoluta acaba por
tratar o corpo humano como um dado bruto, desprovido de significados e de
valores morais enquanto aquela não o tiver moldado com o seu projeto. Conseqüentemente
a natureza humana e o corpo aparecem como pressupostos
ou preliminares, materialmente necessários
para a opção da liberdade, mas extrínsecos
à pessoa, ao sujeito e ao ato humano. Os seus dinamismos não poderiam
constituir pontos de referencia para a opção moral, uma vez que as finalidades
destas inclinações seriam só bens
‘físicos’, chamados por alguns ‘pré-morais’ (VS, 48)
A Igreja Católica, falando sobre a dignidade da pessoa
humana, já declarou em vários pronunciamentos a sacralidade do corpo e também da
alma e que, os dois juntos, formam o homem completo ao qual Cristo veio
redimir: “A pessoa, incluindo o corpo,
está totalmente confiada a si própria, e é na unidade da alma e do corpo que
ela é o sujeito dos próprios atos morais” (VS, 48). Essa unidade da pessoa
humana, também se encontra descrita no Catecismo quando afirma: “O corpo do homem participa da dignidade da
‘imagem de Deus’: ele é corpo humano precisamente porque é animado pela alma
espiritual, e é a pessoa humana inteira que está destinada a tornar-se, no
Corpo de Cristo, o Templo do Espírito” (CIC, 364).
É preciso olhar com muito cuidado essas concepções que
parecem resistir ao tempo e voltam (reaparecem) revestidas de novos argumentos,
mas que são as evocações dos mesmos erros que a Igreja enfrentou nos primeiros
séculos do cristianismo e, hoje define que: “Uma
doutrina que separe o ato moral das dimensões corpóreas do seu exercício é
contraria aos ensinamentos da Sagrada Escritura e da Tradição (...), porquanto
reduzem a pessoa humana a uma liberdade ‘espiritual’, puramente formal” (VS,
49).
Santo Agostinho, em seus escritos quando falava da
relação corpo e alma, mesmo tendo um cunho platônico, fortemente dualista,
afirma que não há nada que aconteça ao corpo que não seja percebido pela alma e
vice-versa; ou seja, corpo e alma, agem em consonância tanto para ao bem,
quanto para o mal: “De fato, corpo e alma
são inseparáveis: na pessoa, no agente voluntário e no ato deliberado, eles
salvam-se ou perdem-se juntos” (VS,
49).
Diante de tudo isso o documento conclui que não há
“espaço à divisão entre liberdade e natureza” (VS, 50), pois estas duas
realidades estão ligadas entre si e auxiliam-se mutuamente. E, portanto, a lei
moral não se refere nem somente ao corpo ou a alma, mas sim a pessoa humana,
fundamentando-se “sobre a natureza corporal e espiritual” (VS, 50) da mesma.
5. “... mas no princípio não era
assim...” (Mt 19, 8)
A
lei natural, já bem definida nos itens anteriores, engloba dois aspectos
específicos: a universalidade e
imutabilidade. A universalidade indica que essa lei, dada por Deus aos
homens e iluminada constantemente por Ele, é válida para todos os homens
dotados de razão, ela é “... universal nos seus preceitos e a sua autoridade
estende-se a todos os homens. Esta
universalidade não prescinde da individualidade dos seres humanos nem se
opõe à unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa...” (VS, 51). Os homens e
mulheres de todos os tempos são atingidos pela universalidade e imutabilidade
da lei natural, pois são criados e chamados “a mesma vocação e o mesmo destino
divino” (VS, 52); ou seja, a santidade e a vida eterna.
Os avanços nas sociedades
contemporâneas, o desejo de liberdade e a rebeldia a todos os dogmas e
preceitos de forma geral, levaram muitos a desacreditarem de uma possibilidade
da lei natural ser imutável. A encíclica levanta uma pergunta que, com certeza,
urge em muitas mentes até hoje: “... será possível afirmar como válidas
universalmente para todos e sempre permanentes certas determinações racionais
estabelecidas no passado, quando se ignorava o progresso que a humanidade
haveria de fazer posteriormente?” (VS, 53).
Mesmo diante de tantos “progressos”,
sempre haverá algo que perdure por todos os tempos da existência humana, “algo
que transcende as culturas” (VS, 53), esse “algo” nada mais é do que “a natureza do homem” (VS, 53). Essa
natureza permite ao homem ter a exata medida de seu ser, não se tornando
escravo de nenhuma cultura ou modismo que venha a ferir a sua dignidade especifica
de ser dotado de razão.
A Igreja nunca esteve fechada aos
progressos e desenvolvimentos, em qualquer que seja a área cientifica ou
social, que possa melhorar a vida do ser humano. Portanto, reconhece que
algumas coisas realmente mudam e devam mudar, entretanto “... subjacentes a todas
as transformações há muitas coisas que não mudam cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre”
(VS, 53).
A lei natural não muda e não pode
mudar. O que a Igreja, seus pastores e os fiéis são convidados a fazer é “...
procurar e encontrar, para as normas morais universais e permanentes, a formulação mais adequada aos diversos
contextos culturais, mas capaz de lhes exprimir incessantemente a atualidade
histórica, de fazer compreender e interpretar autenticamente a sua verdade”
(VS, 53). Atenção particular para o texto que nos propôs procurar e encontrar, pois a Igreja, em sua sabedoria, é testemunha
fiel de que o Espírito Santo não deixará sem resposta aqueles que lhe pedem de
todo o coração sua luz admirável.
O tema que foi abordado nesse trabalho é muito vasto e profundo. Sinto
que não tocamos a ponta do imenso iceberg que envolve esses temas como:
liberdade, lei natural, lei eterna de Deus etc. Apenas tentamos fazer uma
abordagem bem superficial do texto da encíclica usando outros documentos da
própria Igreja.
A
primeira conclusão que percebemos, foi que antes de qualquer coisa é preciso
situar muito bem o que a doutrina católica entende por “liberdade”, onde está
seu fundamento e para onde ela é ordenada. Pois se essa compreensão não for bem
clara, fica quase impossível compreender a posição da Igreja em relação a
algumas tendências que parecem totalmente antagônicas as propostas que a
sociedade atual tem nos oferecido como moralidade.
Gostaria de concluir usando as palavras de Dom Antônio
Monteiro, que em 1993 era presidente da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé: “Seja
como for, como sucede em todos os documentos do Magistério, teremos todos de
saber ler esta encíclica, com a hermenêutica que lhe é própria. Não poderemos
nem deveremos dissociar nunca a encíclica ‘Veritatis Splendor’ do contexto da
revelação, sobretudo da Pessoa de Jesus, do que Ele foi, do que Ele fez, do que
Ele ensinou” (Sartori, 1999, p. 457). Então, mãos e olhos à “obra” nos
oferecida.
BIBLIOGRAFIA
BÍBLIA
DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e
ampliada. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004.
CATECISMO DA
IGREJA CATÓLICA. Edição revisada de
acordo com o texto oficial em latim. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2006.
COMPAGNONI, Francesco; PIANA,
Giannino; PRIVITERA, Salvatore. “Liberdade” in Dicionário de
Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997.
HOUAISS,
Antônio; VILLAR, Mauro de S.; FRANCO, Francisco Manoel de M. “Libertinagem” in Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JOÃO
PAULO II. Carta Encíclica Veritatis Splendor:
sobre algumas questões fundamentais do ensinamento moral na Igreja. 2. ed. São
Paulo: Loyola, 1993 (Col. Documentos Pontifícios).
RATZINGER,
Joseph Card. Instrução sobre a liberdade
cristã e a libertação. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1986 (Congregação para a
Doutrina da Fé).
SARTORI, Frei
Luís Maria A. Encíclicas do Papa João
Paulo II: o profeta do ano 2000. 2. ed. São Paulo: LTr, 1999.
VATICANO II. Declaração Dignitatis Humanae: sobre a
liberdade religiosa. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1997 (Col. Documentos da Igreja,
v. 1)
[1]
Com exceção das citações bíblicas no corpo do texto dos documentos, todas as
outras citações foram retiradas da Bíblia de Jerusalém, veja bibliografia no
final.
[2]
A Bíblia de Jerusalém traz na sua nota (d), para esse texto, a seguinte
explicação: “Deve-se notar a diferença de perspectiva em relação a 1, 26-27: lá
o próprio Deus cria o homem e a mulher a sua imagem, aqui “ser como deuses” (ou
“como Deus”) seria uma empresa humana.
[3]
“1. licenciosidade de costume, conduta de pessoa que se entrega imoderadamente
a prazeres sexuais, a prática do libertino; 2. ant. irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos,
esp. no que diz respeito à religião e às suas práticas ritualísticas...”
(Houaiss; Villar; Franco, 2001, p. 1753).
[4]
“A idéia de lei natural é de origem grega, e não bíblica. Em sua essência, essa
idéia é humana e coincide com a experiência de originariedade e
irredutibilidade de chamamento moral absoluto. Toda a parte sapiencial do
Antigo Testamento não é outra coisa que a reflexão moral, patrimônio de uma
comunidade que foi amadurecendo, aperfeiçoando-se e modificando-se através do
tempo e das diversas situações culturais” (Compagnoni; Piana; Privitera, 1997,
p. 694-695).
[5]
Sujeição a uma lei exterior ou à vontade de alguém de fora; ausência de
autonomia.
[6]
Sujeição (obediência) a uma lei que se tem, por fé na Revelação Divina, Deus
como autor e legislador.